quarta-feira, 25 de abril de 2012

O mártir e a dança da morte



Uma estranha menininha epiléptica e seu cachorro negro colossal (deve ser da raça do Marmaduke). Uma mulher com amnésia e um passado terrível. Um taxidermista sufocado pela velha mãe. Uma atriz italiana vendedora de ossos para animais obcecada em remover suas verrugas. Uma grávida de gêmeas quíntuplas. Um inexperiente e jovem toureador espanhol. Por incrível que pareça todos esses personagens bizarros e suas histórias esquisitas se conectam nesse estranho filme francês por meio do cadáver morto do falecido defunto de um pobre touro, assassinado na arena e desmembrado num matadouro, de verdade em frente às câmeras!



Se "Carnages" (2002) de Delphine Gleize não chega a ser uma jornada épica e complexa de mais de três horas de duração como o aclamado "Short Cuts" (1993) de Robert Altman, com seus quase trinta personagens e suas histórias mescladas entre si, eles acabam tendo alguns temas em comum: o reencontro de parentes sumidos, atropelamentos, cenas em hospital, crises conjugais e por aí vai, mas o assunto central talvez seja a morte mesmo. Só que enquanto em "Short Cuts" as histórias se conectam  através da música (jazz ou clássica), em "Carnages" os mórbidos pedaços do supracitado touro é que cumprirão esse papel de ligação. E se no primeiro todo mundo vive em los Angeles, é local, as partes do pobre animal morto passeiam pela Espanha, França e Bélgica até chegarem aos personagens - é uma viagem internacional!

O filme é fascinante nos seus pequenos detalhes sangrentos e macabros: o jovem toureador assassina o bicho, e este em represália arranca fora o fígado do moleque, assistido na tevê em tempo real pela garota epiléptica e seu cachorro-cavalo, o futuro ganhador do fêmur do mesmo touro! Fêmur esse vendido pela atriz fracassada fazendo bico em supermercado (essa moça é a filha do Marcello Mastroianni com a Catherine Deneuve!) e assídua freqüentadora de sessões de terapia pelada numa piscina com seu namorado patinador insano! Os olhos do bicho acabam com um pesquisador de córneas cuja esposa está grávida de quíntuplas, e os chifres são adquiridos pela velha mãe de um taxidermista de pai surdo-mudo desaparecido que quase lembra Norman Bates (essa é a velhinha do filmaço "Desde Que Otar Partiu"!). Pra fechar o ciclo, a professora da menina maluquinha tem como mãe uma espanhola com amnésia (Angela Molina) que cometeu atrocidades no passado, e ela janta um bifão do touro!

Se a tourada é a dança da morte, nesse filme vemos os personagens passeando e "dançando" pela tela com suas estranhas histórias de vida. Muitos desses personagens vão morrer, outros, como as quíntuplas, nascem. É um filme ao mesmo tempo macabro por causa das cenas gráficas de esquartejamento do animal, mas também interessante e emocionante por expor a vida e a morte e suas estranhas ligações - esse é o título em português do filme, vejam só, que tem até música do Ney Matogrosso!

E um minuto de silêncio ao touro, sacrificado de verdade pra fazer o filme! Ele, na verdade, será o representante-mártir dos milhões de seres bovinos subjugados pela humanidade em nome do bife - e do cinema! "Apocalipse Now", "Oxen", "Idi I Smotri", a exumação de hoje "Carnages"... existem muitos filmes que mataram bois à vera em frente às câmeras em nome da arte!

Quem sabe, talvez, a próxima exumação seja sobre filmes onde as galinhas e os frangos foram as vítimas sacrificadas para aplacar a fome de cinema dos espectadores-glutões, nós mesmos!

O protesto da vaca viúva


Trailer de "Carnages" (2002, Delphine Gleize)

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